No momento em que procuro alinhar estas palavras num artigo o nosso Folhadal vive um inquietante e desconcertante burburinho. Alguém por mero apego aos bens materiais delapidou parte do nosso património e da nossa história, como que dizendo que os nossos antepassados e tudo o que nos legaram de nada nos serve, que cada um pode fazer dessa herança o que bem entender. Assim desapareceu grande parte do casario do nosso Vale do Gato, num gesto ignóbil e revelador da mais pura ignorância da parte de quem o cometeu. Um gesto cometido por alguém nada preocupado com o interesse público das pedras da nossa memória ainda viva e documentada através delas, nem tão pouco, ao que parece, com respeito pela propriedade privada.
Pelos testemunhos que tenho recolhido ou que chegam a mim voluntariamente acredito que o meu inconformismo e revolta é o inconformismo e a revolta de muitos de nós. Este é um daqueles actos que apenas encontra justificação nos interesses alheios de alguém movido pela mera gula ou então por interesses de um egocentrismo atroz. Seja qual for a explicação possível ou equacionável uma verdade parece inquestionável: o Folhadal perdeu o que para muitos é o seu berço. E tudo se passou diante de nós (ainda que, como me foi dito, tudo se tenha passado como pela calada), sem que fosse possível uma simples intenção de reacção. É nestes casos que as populações se sentem mais desprotegidas e mais se dão conta da enorme herança a proteger. Enquanto isso a autarquia nem boceja. A rádio local nem sabe o que é o Vale do Gato. A imprensa local e regional ou fecha os olhos ou tem os seus ritmos. No fim de contas, com todos praticamente ilibados, fomos todos nós e o nosso Folhadal a perder parte da sua história e um dos principais símbolos da sua identidade.
Pessoalmente não faço qualquer menção específica a quem cometeu tal acto, até porque penso ser já do conhecimento geral. Seja como for, estas ou outras “pessoas” um dia teriam um gesto destes. Quanto ao espólio que sumiu é praticamente irrelevante entrar em pormenores, uma vez que sejam quais forem os pedaços a desaparecer perdeu-se a integridade do Vale do Gato, o que restou foi apenas um amontoado de pedras e lixo. Ainda assim pelo que me foi dito desapareceu um antigo forno e algumas das habitações das ruínas do secular aglomerado Agora que o mal está feito importa o povo precaver-se, pois, mais dia, menos dia outros atentados ao que é de todos vão acontecer. Apesar dos clamores constantes, quer meus quer de outros filhos da terra, o povo prefere permanecer como que em estado de coma, prefere sacudir a água do capote como se nada fosse com ele. Só quando o caso afecta directamente algum dos habitantes é que o povo se agita e leva as mãos à cabeça.


vale do gato.png


Neste caso o desgosto é maior por se tratar de um local com importância histórica local e regional, motivos que no devido tempo deveriam ter levado a Câmara Municipal de Nelas a classificar o aglomerando como património de interesse municipal. Mesmo que tal classificação ou outra viesse a obrigar a adquirir aquele espaço, acredito que não faltariam mecenas interessados em colaborar na preservação dos testemunhos históricos da nossa terra. Infelizmente a nossa autarquia confunde cultura com festas de arromba, onde gasta fortunas para potencial turista ver e voltar. De que nos servem as festas se um dia nada existir para mostrar da nossa história? Nessa altura, tal qual uma família rural antiga sem recursos e num ano de boa colheita vinícola, iremos oferecer vinho a quem nos visita, pois o nosso pão será devorado pela nossa insensatez e pela nossa ignorância.
Desde tempos idos as casas do Vale do Gato sempre foram olhadas como a nossa “jóia da coroa”, pela importância que as referidas ruínas e o lugar tiveram no suceder da nossa história (digo ruínas mas parte delas foram ainda recentemente usadas para guardar ovelhas ou apenas para as proteger de algumas chuvadas). Nesse elogio era reforçada toda uma tradição oral de momento ofuscada pela ausência de identificação das populações com os lugares, exceptuando alguns habitantes que têm atravessado gerações e perpetuado essa memória colectiva. O recurso à memória e aos relatos que atentamente escutei em todos estes últimos dias, permitiram concluir que o Vale do Gato com o seu casario e a Quinta da Barca, por onde os antigos atravessavam o rio Mondego, constituem os lugares mais emblemáticos do nosso Folhadal. Curiosamente são lugares praticamente não lugares, pois a história e as pessoas se encarregaram de os remeter ao mais puro esquecimento. Curiosamente, também, são dois lugares profundamente ligados.
No caso particular do Vale do Gato a sua história confunde-se com a própria história do Folhadal. Presume-se que a importância da “estrada velha” e do casario seja anterior à atribuição do foral por D. Dinis em 1286 a 26 moradores do Folhadal. A “estrada” faria parte da designada Rota do Sal, que da Foz Dão seguia em direcção ao Mondego e por aí passava grande parte do sal que se dirigia a Além-Mondego, provavelmente através da Barca, e ao sopé da Serra da Estrela. Do casario faria parte, nomeadamente, uma estalagem e vários estábulos onde os animais poderiam repousar e ser alimentados durante as penosas viagens. A tudo isto se acrescenta, entre outras infra-estruturas, um forno. Com a água a correr nos ribeiros próximos e os solos propícios à agricultura, acredito que os viajantes não seguiriam viagem à míngua. Muito provavelmente grande parte da economia local estava virada para a estalagem, pois haveria que alimentar homens e animais em esforço.
Desde já encantado pela ligação do Folhadal à actividade salineira, permito que algumas dúvidas surjam. De onde de facto vinha esse sal de que se fala? Seria sal marinho? Se assim fosse porque vinha da Foz Dão para o Mondego? Não sei se os seus rios permitiriam uma ligação fluvial às zonas costeiras produtoras de sal marinho, como é o caso de Aveiro e da Figueira da Foz. Mas não sendo sal marinho só poderia ser sal-gema, de onde viria? E permitam-me os leitores uma última questão importante. Porquê o nome de Carregal do Sal e as referências às salinas?
É de supor, pelo que consegui averiguar, que se tratava de facto de sal marinho, a julgar pelos vários argumentos a favor. Um deles, é de que não parecem existir registos da exploração de sal-gema, muito menos nesse período, foi descoberto na Europa bem mais tarde, em Portugal as primeiras ou pelo menos as mais conhecidas salinas do género (não sei se únicas) ainda hoje existem em Rio Maior. Outro argumento, prende-se com a origem do Carregal do Sal, de onde Carregal deriva de uma planta que abundava na região – a cárrega –, a que se juntou a palavra Sal, uma vez que existiam, num local chamado Salinas, armazéns de sal, exageradamente denominados de salinas. Um terceiro argumento a favor do sal marinho é dado numa nota de rodapé na obra que José Pinto Loureiro dedicou a Nelas, a seguir transcrita:

“Anteriormente à exploração do caminho de ferro, as ligações desta região com Coimbra e com o mar faziam-se pelo Mondego, navegável, então como hoje, a partir da Foz Dão, assim se compreendendo o enorme desinteresse na construção da estrada de Mangualde à Foz Dão, passando por Nelas. Posteriormente à inauguração da estação da Mealhada (10-IV-1864), e uma vez aberta a estrada de Santa Comba Dão àquela vila, já o movimento da Foz Dão declinava, para quase desaparecer vinte anos mais tarde, após a inauguração do caminho de ferro da Beira Alta” (Loureiro, 1988: 221).


De facto, a importância do Mondego enquanto via de comunicação com o litoral parece deitar por terra qualquer dúvida sobre se se trataria ou não de sal marinho. Assim parece ser. Um artigo publicado no nosso Planalto pelo recém falecido Sr. Manuel Borges reforça a importância da “estrada velha” do Vale do Gato na Rota do Sal (que me desculpem os leitores mas não sei precisar a data em que foi publicado). Segundo nos dizia nesse artigo, a importância da “estrada” era tanta que ao ser construído o Caminho de Ferro da Beira Alta a companhia concessionária se viu obrigada a construir uma segunda ponte na Fonte do Ouro para que assim manter a circulação na dita “estrada velha”. [Verifiquei que a velha ponte sobre o linha de caminho de ferro está agora abandonada e sem qualquer protecção lateral, apenas serve como depósito de lixo]. Ainda segundo a opinião do mesmo autor, o mesmo Caminho de Ferro, inaugurado em 1884, associado à construção da estrada Foz Dão/Mangualde, que em 1859 teria o seu troço dentro do concelho de Nelas em construção, e associado à reparação do caminho Nelas/Ponte Nova, em 1864, aspectos de que também nos fala Pinto Loureiro, ditaram o fim da importância da estrada do Vale do Gato, que com o fim do tráfego se viu confinado no último século a um caminho rural.
Esta foi, genericamente, a maior parte da nossa história que se perdeu com a venda das pedras do velho casario do já abandonado Vale do Gato. Penso que após este gesto teremos ainda mais motivos para descruzar os braços, só assim se conseguirá proteger o que é de todos nós. Ficou bem provado que só uma iniciativa das populações impedirá novas campanhas de barbárie sobre o nosso património. Concluo este texto com uma nota de agradecimento à minha tia Eugénia que mais uma vez, como o teu feito sempre, me deu todo o apoio e todas as indicações na realização deste artigo. A ela e a todas as vozes anónimas ou não o meu muito obrigado. Não somos muitos quando se trata de zelar pela nossa terra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Loureiro, José Pinto (1988), Concelho de Nelas (Subsídios para a História da Beira), Câmara Municipal de Nelas.
www.carregal-digital.pt


José Gomes Ferreira

publicado por José às 13:44